O Mané de Aparecida


Não sei ainda porque, ou esqueci, mas meu pai é devoto de Nossa Senhora Aparecida. Sempre foi. Lá em casa, religiosidade é algo muito peculiar. Cada um tem um santo a quem é devoto e ponto. Minha mãe sempre que pode não perde uma procissão a ela, em sua cidade natal: Cruz Alta. Por sinal, este ano ela foi, está lá a velhinha, pronta para engordurar os bigodes no churrasco da padroeira do Brasil, tendo como sobremesa uma bela fatia de melancia. Odete é a única lá de casa que tem admiração por igual, a mais de um santo. Sabe a data de comemoração de vários, mas, acho que tem um preferido. Nossa Senhora dos Navegantes... Mas não posso afirmar. Eu? Eu torço para Santo Antônio continuar torcendo por mim, sempre.

O engraçado de tudo isso é que não somos católicos praticantes. Não vamos a igreja com freqüência (a velha até faz novena, trezena e mais outras “enas” quando está disposta), aliás, quase nunca vamos. Portanto, não assistimos a missas, não comungamos aos domingos e coisa e tal. Mas cada um tem sua fé em algo e mantém essa crença.

Enfim, o que vim contar-lhes é a história do Mané de Aparecida. Há vários anos, o José foi ao Rio de Janeiro acompanhado de sua esposa, Maria (meus pais). Eles foram passear e visitar a filha, sobrinha e irmão - meu querido tio trompetista, que hoje sopra o instrumento aos anjos. Fazia muito tempo que José não ia a cidade maravilhosa e queria unir o útil ao agradável, como cumprir uma promessa de décadas a Nossa Senhora Aparecida. Minha queria ver a filha. Estava saudosa, já que durante muito tempo as duas foram unha e carne e é compreensível, pois é sua primogênita (sim, há muitos anos eu tenho mais ciúmes dessa relação e não acredito mais em favoritismo).

A promessa era que José visitaria Nossa Senhora quando ganhasse uma questão substanciosa na justiça, que o ajudasse a aliviar suas dívidas gigantesca. E Aparecida havia cumprido o trato há muito tempo, e até mais de uma vez, até que seu filho decidisse visitá-la. Mas o velho é esperto ou fez a promessa pagou a promessa em partes. Ele também havia prometido que não cortaria o cabelo até ganhar um processo trabalhista. E isso ele fez. Tudo bem que seu cabelo não crescia muito. Não chegava a ficar um Black Power poderoso, como na década de 70. Mas aquela “gruva” não tinha formatação. Estava sem corte infinitamente, porém, quando ele apareceu com os cabelos bem aparados soubemos que as burras estavam cheias.

Maria então cobrou a visita pela padroeira e ele protelou até quando pode. Um belo ano foram os dois rumo ao Rio de Janeiro. No caminho ele tentava convencer a esposa a parar no caminho e ir com ele, mas não conseguiu. Então eles desembarcaram na capital do Estado fluminense; José largou as malas, descansou e no outro dia rumou a São Paulo, para cumprir sua parte do trato. Era um dia comum, da semana creio, e lembro que dizia que o santuário estava abarrotado de gente. O devoto ficou lá, um dia inteiro. Começava missa, terminava missa e o homem rezava por anos, décadas até. Parecia não ter fim tanta conversa que tinha a dizer. Logo, se tornou um alvo fácil de trabalhadores informais que apareciam com mimos cuja imagem dele estava estampada ao lado de sua mentora religiosa. Ele despachou todos. Foi esperto.

Em determinado momento, próximo a hora de ir embora, a fome apertou e José, um homem simples do interior do Estado gaúcho, foi lanchar. Entrou no restaurante e deram a comanda para ele. O homem então saciou a sede e a fome e decidiu que estava na hora de ir embora. Na casa de sua filha, as três mulheres já estavam preocupadas com a demora, afinal, ressalto, José é um homem simples em relação aos luxos de uma vida urbana. Não tinha o hábito de ir a restaurantes e na saída daquele não entendia porque não poderia sair, se queria pagar a conta do que tinha consumido. A atendente, depois de muito tempo, irritada e sem paciência, dizia a ele: “Cadê a comanda senhor?” O homem desorientado disse que não sabia de comanda nenhuma e que queria pagar a água mineral com gás e um pastel e uma coxinha de galinha. “Senhor, cadê o papel que lhe deram na entrada?” Exasperado dizia que não haviam lhe dado papel nenhum e contou todo sua história, como ele sempre faz para explicar as coisas, como se fosse uma reconstituição, para a atendente do restaurante entender que não tinha comanda e que só queria pagar e ir embora.

Nisso tudo já havia ocorrido ameaças de chamar a segurança e a polícia e o diabo a quatro, com perdão da heresia, mas o homem de Nossa Senhora sustentava sua posição. Depois de tanto congestionamento de pessoas na saída, porque José quando pensa que está certo também dificulta, a guria desistiu, cobrou o que lhe dizia que devia e o liberou: “Paga então seu Mané!”

José dirigiu-se para a Estação Rodoviária para verificar se não havia perdido o último ônibus para o Rio e, por sorte – e a benção de Nossa Senhora Aparecida -, chegou em tempo de embarcar. Comprou o bilhete, entregou-o para o motorista e pegou a passagem conferida. Decidiu então fumar antes de entrar no ônibus e ao colocar a passagem no bolso das calças percebeu que lá havia outro papel, do restaurante de Aparecida, com a descrição do que havia comido e bebido. Estava certinho com o que havia dito a moça, mas foi inevitável o sorriso e dizer: Mas que Mané mesmo!

Comentários

Obrigado pelo comentário,
"Queria eu, nos teus ouvidos, baixinho falar, o que o cheiro do mar, misturado ao teu, inspira...!"
Apareça sempre, é bom.
Maurizio

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