O "Piston" está mudo



A música rodeia a minha família, que até músicos, sejam profissionais, sejam amadores, ela comporta. Tem um baixista, que até para os 'states' já foi atrás do sonho americano e da blues band. Tem os pagodeiros de fundo de quintal (que família de negão não tem?) e tinha um trompetista até a madrugada desta sexta-feira. Quando o dia raiou, ele já não iria mais soprar o instrumento, que muitas vezes alegrou nossas festas, mas muito mais do que isso, nossas vidas.

Antônio Carlos Pinto de Araújo tem uma história que eu não conheço ao certo. Era militar do exército, aposentado como capitão, e sempre pensei que fazia parte da banda marcial da instituição. Mas não! Ele era enfermeiro. Possuia uma caligrafia linda, de dar inveja a qualquer mulher, a qualquer pessoa. E mantinha o hábito de escrever lindas cartas. O telefone nunca foi seu amigo, se não para solicitar empréstimos ou felicitar os parentes em seus aniversários, natal e ano novo.

Foi esse nosso último contato de peso. No dia 16 de outubro ele completava anos e com imenso prazer sempre ligava para ele, pois dos parentes (os quais penso que são quase todos serpentes) ele era dos poucos que guardo no peito, com respeito e consideração. No dia 7 de setembro, após ir assistir ao desfile em alusão a independência do Brasil, como todo bom patriota, ele me ligava. E não foi rara a vez em que o alô veio em notas musicais, as quais extraía do seu trompete, ou piston, como chamava. Foi assim desde os meus 15 anos e nunca me cansei de ouvir. Em setembro último não teve parabéns instrumental e agora que o piston está mudo, também não se repetirá mais; porém, suas palavras de carinho e desejos sinceros de bem-estar e felicidade não poderia ter sido melhor...

Uma vez ele me explicou porque era chamado de 60. Tio 60... Tinha a ver com seu número no quartel. Eu, para zombar, o chamava de 80. Tio 80... Ele ria sempre, com seus lábios de vitiligo que encantava as mulheres. Algo mais deveria encantar as nêga também e não duvido disso, afinal, o tio 60 era um preto velho charmoso, garboso, vaidoso, um verdadeiro cavalheiro.

Teria inúmeras histórias para contar dele, desde a minha infância - pois foi na sua casa que cresci e vivi os melhores anos que uma criança pode ter - até minhas primeiras férias de verdade, há cinco anos. Histórias de chorar de tanto rir, histórias de suas piadas, que não eram repetidas, mas quase todas sem graça (he he he), mas de tão ridículas sempre acabava rindo. Histórias com suas esposas... e não foram poucas.

Agora, ele deve continuar fazendo tudo isso em outro plano. Festejando com música, riso, vinho, suas mulheres e muita, mas muita calma... Aquela bem peculiar, que só nós, os Araújo's, possuímos. Que assim seja e que os anjos digam amém!

Fita Amarela
by Noel Rosa

Quando eu morrer, não quero choro nem vela

Quero uma fita amarela gravada com o nome dela

Se existe alma, se há outra encarnação

Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão

Não quero flores nem coroa com espinho

Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho

Estou contente, consolado por saber

Que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer.

Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém

Eu vivi devendo a todos mas não paguei a ninguém

Meus inimigos que hoje falam mal de mim

Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.

Comentários

Valeu muito vir conhecer teu blog. Com certeza vai virar mania voltar aqui. Parabens
Maurizio

Postagens mais visitadas