Passadas

Eram cerca de 22 horas desta segunda-feira fria em Videira. Eu, após mais um maravilhoso jantar preparado pelo aprendiz de Querubin - vulgo Rivail -, estava me gelando na sacada do latifúndio, alimentando meu antigo vício - nicotina.
De dentro da aconchegante extensão de tijolos, cimento, gesso colorido e jogos de luz, veio a voz do Anjo Silvia, que havia retornado esta madrugada para sua nuvem de terrestre. “Boa Noite Elaine!” Mais distante veio a voz de seu companheiro, também desejando boa noite. Depois de responder, olhando em direção a fresta iluminada das portas de vidro da sala, voltei-me para a rua. Foi então que o vi.
A princípio fiquei em dúvida se era homem ou mulher, devido ao som do calçado, mas depois defini como um representante da categoria masculina. Estatura média, acima do peso, andar despreocupado, mas, ao mesmo tempo, cansado. Parecia não sentir o frio da noite, o vento gélido e cortante, atingindo-lhe o rosto e passando por entre os pontos do casado de tricô, cinza.
Embaixo do braço estava uma pasta, que parecia ser de um estudante. Subia lentamente a rua, com o olhar e cabeça abaixados, como quem estivesse pensativo. Pensei: “que força de vontade, com este frio, ir para a escola. Esse é um batalhador”. Continuei imaginando sua rotina: madrugar, ir trabalhar, estudar e voltar para casa, sozinho, e a pé, transpondo a distância entre a instituição de ensino e sei lar. Sabe-se lá se “algo mais” ainda o espera, quem sabe, na sua terceira jornada...
E eu reclamando da vida. Das minhas dores, das minhas dívidas, dos amores mal vividos. Do trabalho que nem é escravo e nem desagradável, apenas e, às vezes, entediante. A sentir falta dos amigos, de lugares para ir, de lazer... Tudo bem que esta é a minha realidade, meu “piercing do umbigo”, mas nada se compara a muitas outras realidades, mais críticas e que nem sempre são choradas por quem as vive.
Me fez lembrar das dores (físicas e psicológicas) do meu pai, do trabalho físico e emocional da minha mãe, dos cuidados e atenções da minha tia, situações essas também bem mais mundanas e sensíveis que a minha. E eu ainda reclamando da vida...
A cena me fez voltar para a terra. Ao mundo dos homens, dos mortais, aterrizar em chão firme. Senti novamente que tenho uma vida feliz, com pessoas felizes e bem dispostas a minha volta. Gente que me dá atenção quando preciso, me auxilia todos os dias, sem nem pensar duas vezes, e estava negligenciando, descuidando de quem zela por mim sem eu pedir.
Marisa Monte canta: “eu admiro quem não presta, escravizo quem eu gosto, eu não entendo, eu jogo o lixo para dentro”. Acho que chegou o momento de cortar esse cordão, já podre, umbilical. Me libertar e voltar a dar carinho, a quem me tem carinho. Estou voltando para o meu corpo, aos poucos, e pedindo reintegração de posse de mim, sobre mim mesma.Desculpem amigos, desculpe família, desculpem colegas. Só mais um pouco de paciência, por que, de passo em passo, eu estou voltando. Não desanimem, tudo passa, eu sei disso agora. Tu vai passar...

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