Cena Doméstica


Eu não tive culpa! Juro pra você que não. Era uma noite de frio e de tempestade. Você sabe a data: 12 de novembro de 2004. Mais uma vez eu estava sozinha. Ele havia saído e me deixado em casa com o meu temor. Celso, meu marido - meu homem, meu gigolô, meu amante, meu ditador, já não sei mais -, sabe que tenho horror as noites de tempestade. Os dias não me afetam assim, pelo contrário, me trazem paz e tranqüilidade; mas as noites sob o céu pesado, carregado de rancor elétrico, de águas cortantes e fria e de escuridão acabam por transformar algo em mim. Você já sabe disso, já lhe contei antes.

Sim, era noite de muito frio e tempestade e assim como o tempo estava minha moral, meus sentimentos, meus nervos: agitados. Nós havíamos brigado, mais uma vez, por bobagem. Eu só perguntei se ele poderia fazer o jantar daquela noite (Celso cozinha muito bem), porque queria ter um pouco mais de tempo para me enfeitar para as bodas de prata de nosso casamento. Não sei como consegui suportar 25 anos de desatenção, desamor, socos e pontapés, aliás, sei sim, com a sua ajuda. Por milagre ele não me bateu desta vez.


Aos berros ele disse que não precisava me arrumar, nunca mais, porque para ele eu não existia mais como mulher. Celso não sentia mais prazer comigo. Preferia comer uma qualquer da rua do que transar comigo, a sua mulher.

Foi embora. Ele me deixou só com toda aquela chuva. Pegou a caminhonete que o presenteei no último dia 12 de novembro e foi às putas, como de costume. Imagine como fiquei? Arrasada primeiramente, com o passar das horas senti-me humilhada. Decidi então acender a lareira para me aquecer e passar o tempo a olhar as suas chamas. Você está entendendo porque não tive culpa? Por tudo isso e pelos 9125 dias de terror que passei ao lado dele. Mas você já está careca de saber disso. É o meu confessor, meu amigo, meu terapeuta, minhas noites e meus dias. Engraçado eu dizer isso de você: careca.

Foi então que o ouvi entrando pela cozinha. Devia estar bêbado. Já até vejo a cena: ele abrindo a porta da geladeira, pegando a garrafa de leite e empenando-a até quase acabar com o líquido. De bucho cheio tenta devolver a garrafa, mas sua embriaguez não ajuda e ela cai no chão. E lá vai ficar juntamente com o leite derramado, até que a palhaça aqui limpe na manhã seguinte.

Decidi mudar essa cena doméstica. Não sei como idealizei tudo, creio que foi automático, pois ainda estava em estado de torpor que ele havia me deixado após a briga. Levantei-me de frente da lareira e fui até a cozinha. Como ele sabe de minha submissão, foi logo mandando eu fazer um sanduíche de peru, que havia sobrado do jantar de ontem. Também sei cozinhar, apenas não gosto de fazer isso, a não ser para o meu marido: jantar a dois, luz de velas... Fui até o armário e peguei a faca de prata do faqueiro que iria presenteá-lo esta noite. Fiz o sanduíche com pão sírio (ele adora), rúcula, requeijão light com óleo de oliva e queijo gorgonzola. Tudo que ele mais gosta.

Enquanto ele comia sem sentir o sabor do que havia feito - durante todos esses anos ele não percebia o meu carinho, não percebia a minha presença, não iria ser agora que sentiria o sabor de um simples sanduíche - eu juntava os cacos de vidro e secava o leite do chão, com muito cuidado, como se estivesse juntando os cacos do nosso casamento. Eu estava fora de mim. Em transe! Peguei a faca e golpeei-o 25 vezes. Uma facada por cada ano de casamento. Fiz sim! Sem culpa, sem dor, pelas costas, depois no peito - com força para dilacerar o coração, assim como ele dilacerou o meu -, no rosto, ainda com a expressão de surpresa, até que o senti sem vida. Entende agora porque que eu não tive culpa?

Lá fora a noite continuava tempestuosa. Já sem medo dela, olhei pela janela e vi, com a ajuda de um relâmpago, o desfiladeiro que fica atrás da casa, aos pés da figueira. Foi simultâneo, também tive um lampejo. Abri a porta da cozinha e por ela arrastei o corpo do Celso até a ponta do desfiladeiro. Depois o empurrei até sentir que ele estava caindo barranco abaixo. Estava com a alma lavada.

Retornei à cozinha para limpar os vestígios de um casamento doído, sofrido. Cansada e amanhecida, volto para frente da lareira, contigo nos braços, e reacendo o fogo com suas páginas por mim escritas.
por mim

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Pôxa, esse texto é velhinho mas eu gosto dele. Taí, cheio de erros mas do jeitinho que curto. Também do mesmo jeito que foi publicado no blog anterior. Sem edições relevantes.

Comentários

Barbara disse…
Amiga Elaine, não conhecia esse teu lado....
Brincadeirinha: achei muito lêgas o conto.
Não deixe de atualizar o blog, viu? E vamos combinar aquele bota-fora de 2005.
Beijão
Anônimo disse…
Mais um texto muito bom, profundo, reflexivo....parbéns! Estou adorando te ler...

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